Tenho a impressão de já haver dito.
Não tem importância. Direi de novo.
A vida não é feita com novidades.
É feita com repetições. Como na música.
Há aquele tema, refrão que se repete, se repete, se repete - e a gente quer sempre ouvir de novo.
É sobre religião. Já me perguntaram por que escrevo tanto sobre religião. Há duas razões.
Primeiro, porque a alma humana me fascina. Ela é um cenário fantástico, com abismos escuros cobertos de neblina, cavernas infernais onde habitam demônios, ao lado de picos altíssimos contra o céu azul, onde crescem flores coloridas e pássaros cantam nas árvores cheias de frutos. Paraíso e inferno num mesmo corpo... Esses cenários fantásticos pertencem ao mundo da religião. E como minha vocação é a de andarilho, eu gosto de caminhar pelas trilhas da alma.
A outra razão é que tenho também a vocação de conversador. Gosto de conversar com as pessoas simples, sem diploma. De preferência na cozinha. Conversar é jogar peteca com palavras. Acontece que as pessoas comuns jogam muito essa peteca chamada religião. Aí eu entro no jogo... Se eu quiser me comunicar com os russos será inútil que eu lhes leia um poema em português. Minhas palavras lhes serão, para usar a imagem do apóstolo Paulo, "como o bronze que soa ou o címbalo que tine" - sons sem sentido.Para conversar é preciso falar a linguagem daquele com quem converso. Isso tem a ver com minha vocação de educador e comunicador. Eu quero entender as pessoas. Eu quero que elas me entendam. Gosto de falar a linguagem da religião por ser esse um jogo de petecas que jogo bem, modéstia à parte...Então, se já disse: repito. Há dois tipos de religião. Um deles é a religião que oferece fórmulas para manipular o sagrado. Manipular o sagrado! Esse é o mais antigo e o mais profundo sonho da alma humana. Atrelar os deuses aos nossos arados! Engaiolar o Pássaro Encantado e levá-lo por onde eu for! Engarrafar o Vento! Por sela e freio em Pégasso, o cavalo voador, e cavalgá-lo! O homem que fizesse isso já não seria homem! Seria um deus... E como a Serpente, aquela do Paraíso, psicóloga conhecedora dos desejos do coração humano, sabia desse desejo, foi bem nesse lugar ela tentou: "... e sereis como os deuses!"Poder é bom. Sem poder a gente morre. Saúde é poder. A doença, ao contrário, é um declínio de poder. Fraqueza. Fraqueza e morte andam próximas. Já imaginaram a euforia do homem quando ele conseguiu domar o fogo? Que extraordinários poderes novos o fogo lhe deu! A luz, na noite escura; o calor, na noite fria; o fogão e a culinária; o poder para derreter os metais, na fundição; o poder para endurecer o barro, na cerâmica... Sem o fogo não haveria civilização.Se a tecnologia nos dá poderes extraordinários, que poderes muito mais extraordinários nos serão dados se conseguirmos manipular o sagrado para os nossos propósitos, da mesma forma como manipulamos o fogo! Pois Deus não é fogo? Afinal de contas os deuses são onipotentes, podem todas as coisas! E é isso que esse tipo de religião promete: atrelar os deuses aos nossos desejos, para que eles façam a nossa vontade. A oração do Pai Nosso dessa religião é meio diferente, embora ninguém reconheça. Ela reza: "Seja feita a minha vontade..." Pois, não é para isso que os deuses existem? Para fazer a nossa vontade? De que me valeria um deus que não faz o que desejo? Não seria melhor procurar um outro? Não é por isso que as pessoas trocam de religião?Bem dizia Dostoiévski que o que os homens desejam não é Deus, é o milagre. Milagre é quando o meu desejo se realiza! A jovem linda dá o seu carinho a um homem repulsivo. Por amor? Não. Ela o beija porque ele é rico e pode fazer as suas vontades. Não é o seu amor que ela busca. Ela busca o seu dinheiro. Assim os homens buscam a Deus não por amá-lo mas pelo milagre que ele pode operar.A prostituição acontece também no mundo das religiões. Do jeito preciso como aconteceu com o homem que achou a lâmpada mágica onde mora um gênio. É só esfregar a lâmpada para que ele apareça e pergunte: "Mestre, qual é o teu desejo para que eu o realize?" Na estória do gênio o truque é simples: basta esfregar a garrafa. Nessas religiões o "esfregar da garrafa" assume uma variedade de formas diferentes, dependendo da barraca, na feira das religiões, em que se vendem e se compram as arapucas para se prender o sagrado: fórmulas mágicas, gestos, rezas, amuletos, livros santos (dizem que são poderosos como proteção para os relâmpagos, em dias de tempestade), colares (pendurados nos carros evitam acidentes), promessas (os deuses vendem os seus serviços por favores), peregrinações a lugares santos (pois lá o poder do sagrado está mais próximo), exorcismos, copos de água à frente dos aparelhos de TV, além dos despachantes sagrados de vários tipos, sendo que um deles promete rapidez, milagres para o dia de hoje.Alega-se, inclusive, que um adesivo num carro, dizendo ser ele propriedade exclusiva de Jesus, afugenta os ladrões. Um ladrão religioso jamais se arriscaria a roubar um carro de Jesus. O castigo seria certo ... Boas relações com Deus são garantias de sucesso. Só é pobre quem quer. Coitados dos profetas! Certamente não tinham boas relações com Deus. Não tiveram sucesso. Não souberam manipular o sagrado para que ele realizasse os seus desejos!Esse tipo de religião é o que é mais procurado porque o que mais desejamos é a realização dos nossos desejos - mesmo que sejam desejos tolos, embora nunca reconheçamos que nossos desejos podem ser tolos.... O seu nome próprio seria magia. Porque magia são as técnicas de que se lança mão para manipular o sagrado para a realização dos nossos desejos.Os profetas do Antigo Testamento o chamavam de idolatria. O idólatra é a pessoa que pensa que o sagrado está preso num objeto, qualquer objeto, um santinho, um templo, uma relíquia, um livro, uma fórmula, uma comida, uma bebida, um rito. Estando preso, o sagrado está sob o seu controle: Deus está engaiolado. É possível levá-lo para onde quero. Posso usá-lo para fazer a minha vontade.
Mas um Deus engaiolado deixou de ser um Deus!
Trecho da Crônica de Rubem Alves "Receita para Milagre"www.rubemalves.com.br
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